segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Fundamentando os riscos

Publicamos artigo de João Marcus sobre os fundamentos dos riscos. Boa Leitura e bom feriado da pátria!


Não basta olhar a crise somente do seu aspecto financeiro. Essa é, certamente, sua parte mais visível, mas não ocorreu num vácuo ou mesmo induzida por um gigantesco surto de ganância. Sua manifestação foi permitida pela promoção de um ambiente econômico propício. É exatamente o entendimento desse ambiente econômico e como ele deveria mudar para ser consistente com a resolução da crise que vai nos permitir ter uma melhor apreciação dos riscos com que a(s) economia(s) se defrontam.
Nos EUA, desde o início dos anos 1990, temos o paulatino aumento dos incentivos governamentais à aquisição da casa própria. O programa foi certamente bem sucedido nos seu principal objetivo, que era o de aumentar o número de proprietários entre os membros das minorias. Assim, entre 1994 e 2006, enquanto o aumento da aquisição da casa própria pela população branca não hispanica foi de 8,3%, entre os hispanicos foi de 20,2%, entre os asiáticos de 17,2% e entre os afro-americanos de 14%.
A figura 1 mostra que nos EUA a oferta de casas cresceu significativamente em termos reais do início dos anos 1990 até 2006 (acentuando-se após a crise da Ásia). Como esta realocação de recursos (agora direcionados para a construção de habitações) pode ser realizada sem causar “estragos” na economia, ou seja, mantendo a economia próxima do pleno emprego e com inflação baixa?

O comércio internacional pode ter sido o caminho, por mais estranho que isto possa parecer dado o fato de que residências não são bens comercializáveis internacionalmente. Como exemplo (que pode ser generalizado para os países asiáticos de modo geral após a crise da Ásia em 1997), no início dos anos 1990, depois da implosão da “bolha” japonesa, o Japão tinha um excesso de oferta de casas enquanto que os EUA, dado o objetivo de promover a casa própria, tinha uma escassez de casas.
Para efetuar a transferência (de casas do Japão para os EUA), no Japão os recursos produtivos (trabalho e capital), vão se deslocar do setor de construção residencial para a produção de bens comercializáveis internacionalmente – exportáveis ou substituição de importação. Dada a vantagem competitiva relativa decorrente desse deslocamento de recursos produtivos, o Japão vai exportar mais para os EUA e importar menos.
Por seu lado nos EUA, onde existe uma escassez de casas, o capital e trabalho vão se deslocar da produção de bens comercializáveis para a construção de residências, importando mais e exportando menos para o Japão.
A figura 2 mostra que foi exatamente isso que aconteceu depois do início dos anos 1990, onde se observa que o superávit comercial do Japão com os EUA foi crescente. A figura 3 mostra que o aumento do déficit comercial americano com o resto do mundo cresceu acentuadamente depois da crise da Ásia. O déficit comercial americano se expandiu porque os americanos queriam mais casas (e bens de consumo duráveis e serviços como cassinos, parques temáticos, hospitais e universidades), enquanto na Ásia, em função da crise e a conseqüente queda da renda, os recursos foram transferidos para o setor de comercializáveis (tradables). Em suma, nos EUA a poupança foi reduzida enquanto que na Ásia ela foi incrementada.

Note, observando a figura 1, que quando a construção de casas para de crescer em 2006 o déficit comercial americano (figura 3) para de aumentar. De modo mais abrangente, entre 2006 e 2009 o déficit em transações correntes dos EUA caiu pela metade, de 6% para 3% do PIB.
Infelizmente o processo de “transformação de casas na Ásia em casas nos EUA” foi longe demais. Na prática os objetivos mirabolantes do governo americano acabaram resultando em um excesso de casas nos EUA, ocasionando, devido aos incentivos distorcidos associados aos esquemas de financiamento do “programa da casa própria para todos”, uma grave crise financeira, que se mostrou global.
A correção do desequilíbrio resultante exige que o “caminho inverso” seja trilhado, ou seja, um aumento da poupança nos EUA e redução na Ásia. Nos EUA já se percebe um aumento da poupança das famílias. Na Ásia, particularmente na China, as estruturas são muito mais rígidas, tornando o “caminho de volta” mais complicado, salpicado de barreiras estruturais.
Por essa razão, a recuperação econômica mundial em curso está baseada num equilíbrio temporário e instável no qual os EUA retardam o aumento da poupança nacional através do aumento do déficit fiscal (despoupança pública compensando o aumento da poupança privada) e a China reduz sua poupança aumentando os gastos públicos e inflando uma “bolha” de ativos.
O objetivo de inflar uma “bolha” de ativos, na cabeça de alguns, seria o de aumentar a riqueza das famílias e reduzir a poupança. Esse raciocínio remonta à experiência japonesa da segunda metade dos anos 1980. Nesse contexto vale a pena, à luz dos acontecimentos contemporâneos, rever a experiência do Japão, apesar de o resultado final do experimento ser bem conhecido.
A história pode ser contada de maneira resumida e ilustrada. Em 1985/87, as autoridades no Ministério das Finanças e Banco Central do Japão tinham que confrontar o problema de estimular a economia. Diante de uma dramática valorização do iene após o acordo do Plaza em setembro de 1985, e conseqüente redução do crescimento econômico pela via da redução das exportações, as taxas de juro foram trazidas ao nível mais baixo da história e a oferta monetária foi significativamente acelerada. Por outro lado, tendo acabado um programa de consolidação fiscal em seguida aos déficits públicos do final dos anos 70 e início dos anos 80, o Ministério das Finanças não estava preparado para promover uma expansão no estilo keynesiano.
A perpetuação do aumento nos preços dos ativos, especialmente imóveis e ações, parecia ser a saída. Como comentado por um funcionário anônimo do banco central em 1988: “Nossa intenção era, primeiro, dar um empurrão nos preços de ações e propriedades. Com esses mercados em alta, as indústrias voltadas para a exportação teriam condições de se adaptar para uma expansão determinada pelo mercado interno. O efeito-riqueza decorrente da valorização de ativos induziria um aumento do consumo e, posteriormente, do investimento. Ao final, uma política monetária expansionista induziria uma retomada do crescimento econômico”.

O Painel Japão ilustra os acontecimentos descritos.
Como no Japão na segunda metade dos anos 1980, o equilíbrio temporário vivido pela economia mundial atualmente depende da ação dos governos. Mais ainda do que no Japão nos anos 1980, as ações em curso englobam estímulos monetários e fiscais.
O ponto a se ter em mente é o de que uma “bolha” puramente associada a um excesso de liquidez que impacta um ou mais ativos financeiros não tem, como no caso de “bolhas” de tecnologia ou de imóveis, força de sustentação mais duradoura. Seu efeito multiplicador na economia como um todo é bastante limitado, tanto pelo lado da demanda, com seu possível efeito riqueza sobre o consumo sendo desprezível, como pelo lado da oferta, já que não estimula a produtividade.
Ou seja, um crescimento eventualmente mais rápido não tem a fundamentação de mercado necessária para sua sustentação. De todo modo, a divulgação de boas notícias no curto prazo excita os mercados financeiros.
As figuras 4 e 5 ilustram esse efeito de “bolha” induzida pelo excesso de liquidez.

Segundo especialistas em China, a retração recente no mercado acionário naquele país reflete certa “pressão” do governo, que gostaria de evitar uma implosão abrupta dos preços das ações. Por outro lado, pode estar refletindo o fato de que, como a recuperação no país teve início alguns meses antes do que nas outras economias, o “ajustamento” também começaria antes.
No momento, o mercado acredita no “poder dos governos”. No entanto, começa a ganhar peso a opinião daqueles que acham provável uma nova queda da atividade econômica. Analistas e os próprios responsáveis pela implementação das políticas de estímulo têm se manifestado frequentemente sobre a “estratégia de saída” a ser adotada tanto pelos Bancos Centrais como pelos Departamentos do Tesouro.
Na opinião de uma minoria que vem crescendo, as autoridades vão brevemente se defrontar com uma situação tipo: “se ficar o bicho come”, ou seja: se mantiverem as perspectivas de altos déficits fiscais e elevada liquidez os “vigilantes” dos mercados de bônus vão “punir” os governos. As expectativas inflacionárias, independentemente do excesso de capacidade reinante, vão subir aumentando as taxas de juros dos títulos públicos longos, o que na prática colocaria a economia numa situação de “Estagflação”.
Alternativamente, “se correr o bicho pega”, ou seja: se levarem a sério a necessidade de redução dos elevados déficits fiscais e aumentarem impostos e/ou reduzirem gastos, além de iniciarem o processo de enxugamento da liquidez, correm o risco de brecar a recuperação colocando a economia numa situação de “Estagdeflação”. Como observado no “Painel Japão” acima, este foi o destino da economia japonesa nos anos 1990, já que, com o estouro da “bolha” de ativos, as autoridades optaram por contrair a liquidez.
Qual a situação mais provável no contexto da economia americana? Nas duas últimas recessões, caracterizadas por jobless recovery (recuperação sem emprego), o Fed somente iniciou o processo de alta dos juros depois que a taxa de desemprego apresentou nítida tendência de queda. Isso pode ser verificado nas ilustrações da figura 6.

Na recessão atual, acoplada a uma crise financeira, tudo indica que a taxa de desemprego, atualmente superior a 9%, deve subir mais antes de começara a recuar lentamente. Desse modo tendo a apostar na estratégia de “ficar”, ou seja, na manutenção dos estímulos e juros “zero” ainda por algum tempo.
Nesse cenário de recuperação sem sustentação tendendo para uma situação de “estagflação”, alguns enxergam o comportamento do preço do petróleo como indicador antecedente de tendência inflacionária, com o aumento do seu preço sendo impulsionado pela abundante liquidez internacional, notadamente nos EUA e China. Como a sensibilidade do preço do petróleo aparenta ser baixa tanto pelo lado da demanda quanto da oferta, ele seria perfeitamente adequado para absorver o excesso de liquidez e refletir as expectativas de inflação antes de outras commodities. Por este prisma o comportamento do preço do petróleo nos últimos meses não é alvissareiro.
Independentemente de outras considerações, permanece o fato de que uma segunda “perna” de queda nas economias, o que daria ao processo o formato W, seria demonstração dos limites do poder dos governos. Nessa eventualidade, muito provavelmente os preços de ativos cairiam de modo significativo podendo permanecer deprimidos por longo período.
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*João Marcus Marinho Nunes – 28 de agosto de 2009

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